terça-feira, 16 de março de 2010

O Caso Wagner Love

Mais uma vez a hipocrisia e o cinismo (características inexoráveis dessa grande mídia) ficaram mais do que evidentes no caso que envolveu o jogador do Flamengo, Vagner Love. Como teimam em fazer com todos aqueles que se mantêm fiéis às suas raízes mais humildes, a grande mídia tenta denegrir, marginalizar e intimidar o jogador. Tudo isso pelo simples fato de Vagner ter ido a um baile na comunidade da Rocinha. Essa simples atitude foi suficiente para que houvesse uma tentativa de associá-lo ao tráfico de drogas; um verdadeiro absurdo! Aliás, se fosse possível dar um conselho ao Vagner, na também absurda suposição de que ele estaria envolvido com o tráfico, o conselho seria o seguinte: Vagner, se você realmente pensa em traficar drogas para ganhar dinheiro, não vá para a Rocinha e nem para nenhuma outra favela ou morro do Rio de Janeiro. Ali funciona apenas a parte do varejo das drogas; como se fossem pequenas barraquinhas que vendem no varejão. Se a sua intenção é enriquecer com as drogas, vá morar em algum condomínio de luxo da Barra, de Ipanema ou compre uma daquelas mansões de Angra dos Reis; lá a venda é no atacado. São nesses lugares que o tráfico realmente dá muito dinheiro e você não corre risco algum da polícia entrar metendo o pé na porta para lhe prender ou executar. Entendeu, Vagner?

Numa pergunta que mostra o tamanho da hipocrisia da grande mídia, um repórter perguntou ao Vagner se ele tinha visto alguém armado quando estava na Rocinha. Ora, até a pessoa mais imbecil e idiota da face da Terra sabe que em qualquer favela que tem tráfico de drogas é comum a presença de indivíduos armados. A pergunta que todos nós deveríamos fazer, e que não seria dirigida ao Vagner, é: como essas armas chegaram até lá? Mas nesse caso, a resposta não iria agradar aos donos do poder midiático, pois eles teriam que acusar aqueles que são, para eles, os exemplos máximos de Civilização: Estados Unidos, Suíça, Alemanha, Israel, etc. Que são, na verdade, os maiores produtores de armas do planeta. E se essas armas são produzidas legalmente, então todas elas possuem numeração de série para que haja controle na venda e na produção. O que significa que quem produz sabe muito bem para onde, para quem e qual quantidade está sendo vendida. Saber como e por que essas armas estão chegando aqui é que é a grande questão.

Se realmente houvesse a vontade e a intenção de acabar com o tráfico de armas (o que consequentemente acabaria com o poder bélico dos traficantes), a primeira medida a ser tomada era fechar as fábricas onde esses armamentos são produzidos. Seria a mesma lógica que se usa quando se diz que para acabar com o tráfico de drogas é preciso atacar o local onde as drogas são produzidas, e justifica-se, então, a política do War on Drugs (Guerra às drogas), arquitetada e patrocinada pelo país que mais produz armas no mundo: os Estados Unidos. Caso contrário, seria como tentar enxugar um local onde houvesse uma torneira aberta constantemente. Ou seja, você retira um pouco de água daqui e dali, mas como a torneira continua aberta e jorrando mais água o seu trabalho e esforço não têm eficácia e nem utilidade nenhuma!

Outro ponto forte de hipocrisia e cinismo dos baluartes da moral e dos bons costumes é a diferença de tratamento dispensada para casos que são muito mais graves e preocupantes do que o caso do Vagner. Porém, esses envolvem figuras que pertencem geralmente aos quadros de funcionários das grandes emissoras (principalmente os próprios jornalistas e também atores e atrizes de renome) ou aqueles que simplesmente pertencem à elite financeira desde o berço. Para ilustrar melhor essa colocação, citarei alguns exemplos. Um caso clássico é o Cazuza, que participava de grandes orgias e usava vários tipos de drogas fossem elas lícitas ou ilícitas. Mesmo com tudo isso, acabou por se tornar herói nacional e exemplo de vida para várias gerações. Para comprovar isso basta assistir o filme baseado na sua vida, Cazuza: o tempo não pára, para constatar que o seu comportamento e as suas atitudes são encobertas por uma áurea de romantismo, coragem, idealismo, candura, etc. Mais recentemente, tivemos os exemplos dos atores Marcelo Anthony e Fábio Assunção, onde ambos se envolveram com drogas e com traficantes de drogas. No entanto, o tratamento que receberam foi do tipo que é dispensado às pessoas doentes, com problemas psicológicos, que precisavam de ajuda, carinho e compreensão. Jamais foram tratados como marginais, pessoas que poderiam oferecer algum risco à sociedade ou servirem de mau exemplo – nesse caso é bom lembrar que nem o Vagner Love e nem o Adriano (outro jogador de futebol perseguido pela imprensa) nunca foram flagrados usando e nem portando drogas. O que nos faz refletir sobre o porquê de tanto estardalhaço e espanto pelo fato de um ou outro jogador freqüentar a comunidade onde nasceu, cresceu e possui amigos, parentes, etc. A resposta só pode ser a do eterno preconceito, menosprezo e sentimento de superioridade moral e ética que a classe dominante tem em relação àqueles mais necessitados na pirâmide societária. No fundo é aquela velha lógica do Ter para Ser; se você não Tem você não É nada.

Destarte, podemos ver porque o simples fato do Vagner Love ter ido a um baile na Rocinha foi tratado como se essa atitude do jogador fosse um verdadeiro crime. Bom seria que toda essa severidade moral e ética se estendesse também para aqueles que pertencem à classe dominante. O que seria daqueles que são vizinhos de um Paulo Maluf, Daniel Dantas, José Roberto Arruda, a família Sarney e tantos outros? Como reagiriam essas pessoas ao receberem aquele famoso tratamento dispensado, desde os tempos mais remotos, aos mais pobres: pancada, cadeia e morte? Mas como sabemos muito bem, os tipos de crimes cometidos pela classe dominante, embora atinjam muitos mais pessoas e sejam muito mais violentos e letais do que aqueles cometidos pela classe menos abastada, são os que possuem as menores penas e uma maior quantidade de alternativas para o cumprimento dessas penas (e isso nos raríssimos casos em que alguns deles sofrem alguma condenação). Como disse M. Foucault em seu livro Vigiar e Punir:

“A prostituição patente, o furto material direto, o roubo, o assassinato, o banditismo para as classes inferiores; enquanto que os esbulhos hábeis, o roubo indireto e refinado, a exploração bem feita do gado humano, as traições de alta tática, as espertezas transcendentes, enfim todos os vícios e crimes realmente lucrativos e elegantes, em que a lei está alta demais para atingi-los, se mantêm monopólio das classes superiores.” E conclui: “Não há então natureza criminosa, mas jogos de força que, segundo a classe a que pertencem os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão.”

Portanto, para aqueles que fazem esse porco, hipócrita e cínico jornalismo, peço apenas que tenham um pouco de vergonha na cara, menos ambição financeira e mais ética na sua profissão. Se o mundo está se tornando esse lugar insuportável para se viver, vocês têm uma boa parcela de culpa nessa piora. E espero que cada vez mais os valores cultuados por pessoas como vocês e os seus senhores sejam cada vez mais destruídos e desmoralizados por todos aqueles que vêem a vida como algo bem maior e mais importante do que esse amor pelo dinheiro, cultuado e propagado por vocês. Seria o fim do seu mundo mesquinho e vazio se esses garotos que estão ficando famosos e milionários jogando futebol, voltassem para suas comunidades não apenas para curtir um baile ou rever amigos e parentes, mas que também ajudassem na transformação política, social e cultural dessas pessoas. Que gastassem um pouco do seu prestígio e do seu dinheiro construindo bibliotecas, cinemas, teatros, cursos de filosofia, história, sociologia e tantos outros. Seria o início de um novo mundo ou, como disse Charles Chaplin: “Um mundo que daria futuro à juventude e segurança à velhice.” Quem sabe um dia? Quem sabe...



Renato Prata Biar; Historiador e Pós-graduado em Filosofia