domingo, 3 de maio de 2009

Relatório enviado à Anistia Internacional denuncia obstáculos para condenação de militares envolvidos em assassinatos no RJ

É um apelo desesperado contra ameaças, intimidações, medo e risco de morte. O documento intitulado O Judiciário trabalhando contra a Justiça, elaborado pelo Grupo Tortura Nunca Mais em parceria com a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, relata casos de assassinatos cometidos por militares no Rio de Janeiro. Entre 22 agentes do Estado, formalmente denunciados, listados no levantamento, apenas cinco estão presos. Há policiais que ainda respondem ao processo. Outros, mesmo condenados a 68 anos de reclusão, conseguiram aguardar em liberdade o julgamento de recursos (veja o quadro). A Anistia Internacional recebeu o documento e se comprometeu a pressionar autoridades brasileiras para combater a impunidade.

A informação é de Maurício Campos, membro da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência e coordenador do relatório. Na avaliação dele, ainda está muito arraigada no Brasil a política de não condenar membros do Estado, especialmente se o caso está relacionado à violação de direitos humanos. “Temos essa herança da época da ditadura. Enquanto todos os países, como Chile e Argentina, próximos de nós, têm levado generais de alta patente aos tribunais, aqui isso não acontece”, lamenta.

Mesma opinião tem João Ricardo dos Santos Costa, vice-presidente de direitos humanos da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB). “O país se redemocratizou e as práticas policiais continuaram com métodos deploráveis, como a tortura, por exemplo”, diz. Ele destaca, entretanto, que frequentemente processos do tipo já chegam aos tribunais comprometidos. “Começa pela prova, que nos casos penais precisa ser substancial, até para que não atropelemos os direitos constitucionais. E aí vem a primeira dificuldade, porque quem investiga são policiais também. O Judiciário fica sem meios para atuar”, destaca. A Polícia Militar do Rio de Janeiro foi procurada pela reportagem do Correio, solicitou o envio de um e-mail com perguntas, mas não o respondeu.

Dificuldades
Colher depoimentos, que em casos de execuções pode ser a principal prova do processo, é outro problema no Brasil, de acordo com o Elias Mattas Assad, ex-presidente da Associação Brasileira de Criminalistas. “As pessoas sofrem ameaças, têm medo de se expor, especialmente se for para testemunhar contra um policial. Elas acabam se resignando e deixando para lá”, diz o advogado. Ele lembra, porém, que quem condena ou absolve, em casos de crime contra a vida, é o júri popular. “São pessoasescolhidas da sociedade, que muitas vezes acabam sendo complacentes com o policial, até em reconhecimento de um suposto serviço público que ele presta”, explica.

José Luiz Faria da Silva ainda luta para ver o assassino do seu filho, Maicon, responder judicialmente pelo que fez. O menino, que tinha dois anos e meio quando foi atingido por um tiro, durante uma ocupação em Acari, na Zona Norte do Rio, morreu há 12 anos. Desde então, Silva tenta tocar o processo para identificar o atirador, mas não teve sucesso. A ação acabou arquivada. O caso foi levado, então, à Organização dos Estados Americanos (OEA) pelo pai, que aguarda um encaminhamento. “Movo uma ação contra o estado do Rio de Janeiro e essa, na OEA, contra o Brasil. Só quero que a pessoa que matou o Maicon sofra as consequências do seu ato”, protesta.

Campos, da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, critica a postura de juízes que suspendem a prisão temporária de policiais sem levar em conta os relatos de ameaças e intimidações sofridas por testemunhas e familiares de vítimas. “Parece que o Judiciário não leva a sério a importância de se condenar os policiais para dar o exemplo”, reclama. João Carlos explica que, entre os critérios de prisão, impera o princípio da inocência. “Existe essa dificuldade, porque temos de ter situações concretas de ameaças para negar uma libertação”, diz. “Então, o juiz que preside o processo fica com poucas saídas. O que ele deve fazer é oficiar os órgãos competentes para prestar proteção às pessoas envolvidas.”

Um caso clássico de intimidação relatado no documento elaborado pelos movimentos sociais é o de Wagner dos Santos, um dos sobreviventes da Chacina da Candelária, quando oito crianças de rua foram mortas e dezenas ficaram feridas no Rio. Em 1994, um ano depois da matança, Wagner sofreu um atentado. Atiraram quatro vezes contra ele, tentando impedi-lo de testemunhar, mas o rapaz reconheceu quatro militares. Um deles, o então tenente da PM Marcelo Ferreira Cortes, acabou absolvido. Vítima de perseguição, Wagner conseguiu sair do país. Hoje, vive em Genebra.



Casos sem desfecho

O documento elaborado pelos movimentos sociais do Rio de Janeiro traz casos de execuções com envolvimento da polícia. Veja alguns:

Caso Via Show
Na noite de 5 de dezembro de 2003, Geraldo Sant’Anna de Azevedo Junior, 21 anos; Bruno Muniz Paulino, 20; Rafael Paulino, 18, e Renan Medina Paulino, 13, foram vistos pela última vez na casa noturna Via Show, localizada na Baixada Fluminense. Os corpos dos rapazes foram encontrados em 9 de dezembro, com marcas de tortura e tiros de fuzil na cabeça. As investigações chegaram a oito policiais militares que faziam bico na casa de shows. Quatro aguardam o julgamento em liberdade e quatro já foram condenados. Dois deles, entretanto, sentenciados a 68 anos de detenção, conseguiram liberação para aguardar o resultado de um recurso em liberdade. O relator do processo, que decidiu pela libertação dos condenados, alegou que eles estavam passando por constrangimento na prisão.

Caso Providência
Em 14 de junho de 2008, três jovens, David Wilson Florêncio da Silva, 24 anos; Wellington Gonzaga da Costa Ferreira, 19, e Marcos Paulo Rodrigues Campos, 17, moradores da Favela da Providência, no centro do Rio de Janeiro, foram assassinados, após terem sido presos e entregues por 11 militares do Exército a traficantes do Morro da Mineira, vizinho e rival da favela onde moravam os garotos. Os 11 militares, sendo um tenente e os demais seus comandados, foram presos temporariamente, acusados por triplo homicídio qualificado. Hoje, três estão detidos. Os outros cinco aguardam o julgamento do processo em liberdade.

Caso Oldemar Pablo Escola de Faria
Em 6 de setembro de 2008, ocorreu uma briga na casa de shows Aldeia Velha, em São Gonçalo, cuja proprietária é Alexandra Durão de Barros Pereira, mulher do tenente da PM Carlos Henrique Figueiredo Pereira, que atua como segurança no local. No meio do tumulto, o tenente atirou na cabeça de Oldemar Pablo Escola de Faria, 17 anos, segundo as investigações. Carlos Henrique chegou a ser recolhido no Batalhão de Benfica, mas aguarda em liberdade o julgamento. A família reclama de estranhezas durante o processo, tais como o sumiço dos projéteis retirados do corpo de Oldemar no hospital, bem como uma tomografia realizada quando ele ainda estava em coma.

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