domingo, 27 de setembro de 2009

Os zapatistas e os partidos políticos

Escrito por Guga Dorea
02-Set-2009


As últimas eleições legislativas, como inclusive já foi descrito em
recente artigo no Correio da Cidadania (1), apontaram para o perigo de
o Partido Revolucionário Institucional (PRI) retornar ao poder no
próximo pleito presidencial. Esse temor poderá incendiar o debate no
México entre forças de esquerda sobre a questão sempre complexa da
necessidade de se conquistar o poder ou não para se mudar o mundo. De
um lado, temos os zapatistas que, desde a sua fulminante aparição no
início de 1994, vêm
apostando e praticando o lema "mudar o mundo sem tomar o poder". Do
outro lado dessa instigante equação, encontramos algumas guerrilhas
de esquerda ainda defendendo a tomada de poder via revolução.


No entanto, a polêmica acentuada, com essa recente vitória do PRI, vai
em direção aos possíveis limites e perspectivas da democracia
representativa naquele país. A postura dos zapatistas, diz a esquerda
mais ortodoxa, tende a afastar os possíveis eleitores do Partido
Revolucionário Democrático (PRD) das urnas, o que abriria espaço para
o PRI vencer as eleições e retornar ao poder.


Para os zapatistas, no entanto, as forças políticas do México
encontram-se hoje no mesmo nível de equivalência. De uns tempos para
cá, vem dizendo constantemente o subcomandante Marcos, não há
diferencial algum entre partidos cujos espectros ideológicos se
encontram, pelo menos no discurso, em posições opostas, como acontece
justamente com o PRI e o PRD.

Em diversos comunicados, o subcomandante tem reiterado que os partidos
políticos estão no mesmo patamar de degeneração e de corrupção, não
importando quem esteja no poder. Segundo ele, as ações impostas contra
movimentos sociais de resistência por ambos os partidos, quando estão
no poder, estão se dando igualmente pela repressão e o não-diálogo.

Caminhando então para essa perspectiva, a vitória do PRI perde a sua
importância quando se trata de uma representatividade real, ou seja,
mesmo que o PRD alcançasse o poder, o povo não estaria sendo
verdadeiramente representado. A proposta zapatista, nesse contexto,
está inscrita na atual crítica ao modelo liberal de representatividade
política.

De acordo com os zapatistas, existem hoje dois projetos para o México.
Um deles é o do poder, que limita a participação política ao voto. O
segundo projeto, enquanto isso, é o do movimento, ou melhor, o da ação
política e da organização da chamada sociedade civil, incluindo aí uma
nova concepção sobre o que é ser igual e diferente no mundo atual.

Para pensadores mexicanos, como Luis Villoro e Luis Hernández Navarro
(2), partidos historicamente de esquerda, como o PRD e o Partido do
Trabalho (PT), estão atuando da mesma forma que as agremiações de
direita. Estamos, segundo Villoro, vivendo o que ele chamou de
"partidocracia (3)", caracterizada por uma espécie de privatização dos
partidos políticos, que se perpetuam no poder em um mar de lama
burocrático e corrupto. A manutenção do poder, nesse contexto, é o que
importa, desconsiderando-se a
existência do eleitor e de suas reivindicações.

A política estatal, diante disso, é desatrelada da sociedade civil
passando a ter vida própria e independente, a não ser em períodos
eleitorais, quando se produz uma série de retóricas para capturar o
eleitor tendo em vista a perpetuação do poder. Aquele que vai às urnas
de tempos em tempos, por sua vez, é muitas vezes levado a pensar que
está fazendo parte de uma suposta festa cívica e democrática.

Logo após o ato do voto, o eleitor tende a retomar a sua rotina diária
e cai no imobilismo político e na frustração de que seu voto só valeu
para colocar alguém no pedestal do poder, aquele que supostamente
falou em seu nome e depois quebrou qualquer possibilidade real de
vínculo, ignorando o próprio ato de votar do seu fictício
representado.

Ora, se o eleitor deposita todas as suas esperanças naquele que está
sendo votado, o seu poder de transformação vai ser transferido para
alguém que ele mesmo considera intocável. Quando a mudança esperada
não vem e as expectativas são quebradas, os eleitores, envolvidos em
uma insustentável desilusão, tendem ao conformismo e à aceitação
passiva do cinismo da
política. É nesse momento que o "político profissional" entra no vácuo
dessa que já foi chamada de "síndrome de carência e captura" e,
através do marketing eleitoral, produz novos desejos e sonhos de uma
vida melhor sempre para o futuro próximo, ou seja, após as eleições
seguintes.

É nesse contexto que podemos inserir o que os zapatistas chamaram de
"Outra Campanha". Desarmado, o subcomandante Marcos partiu de Chiapas
e foi enviado para uma longa caminhada pelo México. Metaforicamente,
ele começou esse percurso com uma moto, talvez fazendo uma alusão à
célebre viagem daquele que se tornaria Che Guevara.

No entanto, o objetivo da chamada "Comissão Sexta" (4) não foi o de
assumir o papel de vanguarda política e muito menos de procurar
conscientizar os oprimidos de seu papel histórico de promover a
revolução. No primeiro dia de janeiro de 2006, a caravana zapatista
embarcou por uma trilha, para muitos inédita, tendo como meta o
princípio da escuta, ou seja, ouvir os anseios do outro.

Não para dizer "vote em tal partido político" ou "ouça a voz dos que
têm a legítima consciência de suas necessidades". Os zapatistas não
pretenderam falar em nome dos necessitados e prometer que no futuro
eles serão felizes, mas apenas com uma condição: o de seguir uma
vanguarda dona do saber político, seja ela materializada pelo partido
político ou por algum
movimento organizado de esquerda.

O que os zapatistas desejavam, e continuam desejando, é a exaltação e
a potencialização da diversidade cultural e humana. Não tencionavam
que uma idéia, plataforma política ou proposta de sociedade se
sobrepujasse a outras, estabelecendo-se aí o que Foucault denominou
como luta de verdades contra verdades. E muitos menos que as
diferenças se isolassem em guetos.

O recado zapatista foi: organizem-se de uma forma autônoma e lutem por
democracia, justiça, liberdade e dignidade. Não esperem a redenção por
intermédio de algum salvador da Pátria qualquer, em uma postura
passiva de resignação e de vitimização. Trata-se aqui de positivar as
diferenças no que podemos considerar como uma nova cultura política,
mais transversal e
menos vertical.

Como têm dito insistentemente os zapatistas, não importa quem esteja
no poder. Não se trata também de pensar que um suposto voto consciente
venha redimir a já falida democracia representativa, além de imaginar
que uma simples mudança revolucionária no tabuleiro do xadrez traga a
redenção na terra. O fundamental é que a sociedade civil esteja sempre
alerta e
resistente. A transformação social, não se cansam de enfatizar os
zapatistas, só virá com a organização autônoma dos "de baixo" e não
com "os de cima", os que se proclamam detentores de uma verdade
dogmática inquestionável e irredutível, apontando para uma inexorável
luz, muitas vezes profética, no final do túnel.

1 - Ver "A conservação do imobilismo: as eleições democráticas no
México 2009" (1 e 2), escrito por Eduardo Silveira Netto Nunes.

2 - Ver "Si no es ahora, ¿cuándo?, xojobil.blogspot.com .

3 - Ver "Decir no", Xojobil.blogspot.com .

4 - Uma alusão à Sexta Declaração da Selva Lacandona. A "Comissão
Sexta", por sua vez, foi formada por uma equipe de comandantes e
comandantas que agiram alternadamente na coordenação e seguimento da
"Outra Campanha". O subcomandante Marcos, com o nome de Delegado Zero,
fez parte dessa comissão.

Guga Dorea é jornalista e cientista político, atualmente integrante do
Instituto Futuro Educação e pesquisador colaborador do Projeto
Xojobil

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