terça-feira, 10 de novembro de 2009

“Não existe pena de morte no Brasil, mas as autoridades permitem à polícia matar” (entrevista ao jornal Causa Operária)

Causa Operária entrevista nesta semana Patrícia de Oliveira, uma das fundadoras da Rede de Comunidade e Movimentos contra a violência policial no Rio de Janeiro. A rede reúne moradores de favelas e comunidades pobres em geral, sobreviventes e familiares de vítimas da violência policial ou militar. Desde o dia 17 de outubro, após a queda de um helicóptero no morro São João, no Engenho Novo, próximo ao Morro dos Macacos, estão ocorrendo operações policiais. Foi divulgada a morte de mais de 40 pess

9 de novembro de 2009



Causa Operária – Você pode se apresentar, contar um pouco de como se integrou ao movimento?

Patrícia – Meu nome é Patrícia de Oliveira, faço parte da Rede de Comunidades Movimento Sem Violência. A Rede surgiu em 2004 depois da chacina do Borel [No final da tarde do dia 16 de abril de 2003, dezesseis policiais do 6º Batalhão de Polícia Militar realizaram uma operação no morro do Borel, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Impedidos de se identificarem, quatro rapazes foram assassinados durante a operação: Carlos Alberto da Silva Ferreira, pintor e pedreiro (21 anos); Carlos Magno de Oliveira Nascimento, estudante (18 anos); Everson Gonçalves Silote, taxista (26 anos) e Thiago da Costa Correia da Silva, mecânico (19 anos).] Eu ajudei a fundar. Antes eu já fazia parte de outros movimentos, ajudei no canto brasileiro que trabalha com crianças desaparecidas. Eu tenho um irmão, que estava na chacina da Candelária que aconteceu em 1993 e em 95 eu comecei a participar e estou até hoje.



Causa Operária – Como se formou a Rede de Comunidades e movimentos contra a violência e como ela atua?

Patrícia – A partir da chacina do Borel em 2003, mas a Rede só se formou em 2004. Os assassinatos aconteceram em 2003, 16 de abril. Várias pessoas que faziam parte de outros movimentos organizaram um ato para pedir justiça. Quatro jovens foram assassinados pela polícia na comunidade do Borel e um sobreviveu e é testemunha. Fizemos várias reuniões e uma grande manifestação da São Miguel até a Afonso Pena e depois fizemos outros atos. Em 2004 fizemos uma grande manifestação em frente ao Palácio Guanabara. E acabou surgindo a rede que é formada basicamente por familiares dos que sofreram violência policial. A rede atua acompanhando familiares em delegacia indo nos julgamentos, participando de manifestação. Tem uma comissão de comunicação, uma jurídica que eu faço parte, a Comissão de apoio aos familiares vítimas de violência, que eu também faço parte e outras pessoas que fazem parte.



Causa Operária – Na última semana uma jovem de 24 anos foi assassinada pelas costas com uma criança de 11 meses no colo. Este fato coloca em evidência que não tem nada de “combate ao crime”. Como vocês caracteriam esta ação da polícia?

Patrícia – Nós fizemos até uma reunião de emergência na quarta-feira passada, porque depois que derrubaram o helicóptero no Morro dos Macacos que caiu perto do morro São João, teve várias declarações do secretário, do governador de que tinha que achar as pessoas que fizeram aquilo e começou uma operação que costumamos chamar de “revide”. Começou o revide do Estado para demonstrar que não pode acontecer. Mas morreu mais gente do que foram presos. Todas as vezes que acontece um fato que envolve a polícia militar, o Estado, os governantes querem dar uma resposta rápida demais e diz “isso não pode acontecer”. O assassinato de Vigário, por exemplo. O que aconteceu: quatro policiais foram assassinados na Praça do Rocha e depois outros policiais se reuniram e foram lá e mataram 21 moradores para mostrar que aquilo não poderia acontecer. O pessoal porque estava trocando vários comandantes, mataram uma pessoa e jogaram a cabeça no matagal, depois foram lá e mataram 29 pessoas. Então todas as vezes que acontece alguma coisa envolvendo policiais, o Estado vai logo e revida. Igual no Complexo do Alemão que foram 19 mortos naquela mega operação. Os policiais estavam tomando conta do lugar do João Helio e foram assassinados e os policiais foram lá e assassinaram 19 pessoas. Esta política de enfrentamento, a política do revide, está trazendo para o Estado do Rio de Janeiro só mortes e mortes. Até terça-feira passada eram 44 mortes, agora já nem sei quanto são porque eles não divulgam. E não dá para contabilizar. A Rede e a Ação Global estarão fazendo um ato no dia 5 na porta da Secretaria de Segurança e é chamado um manifesto público contra o “revide” da segurança pública do Rio de Janeiro. Tem até o manifesto. São mais ou menos 50 instituições do Rio que assinam, só no Rio, mas tem mais em São Paulo, Vitória, Bahia que também estão apoiando este manifesto. Se a polícia tivesse mais Inteligência, nada disso estaria acontecendo. A polícia não trabalha com inteligência. A nossa sociedade também é muito hipócrita. Teve a vez em que o Luiz Melo foi na Farmácia e deu um tiro na cabeça do refém na farmácia.Tinha opções em que não precisava matar, claro que tinha. Todo mundo viu que a granada não ia explodir, especialistas da área de segurança falaram isso. Tinham técnicos que poderiam ter desativado e a polícia sabe disso. Mas a polícia de segurança do Rio de Janeiro, apoiada pelo governador do Rio, que é quem determina tudo é assim, primeiro você mata para depois saber quem é. Bandido fica caçando a polícia, a polícia fica caçando bandido. Vai no morro pega dinheiro e depois quer bater e matar. É isso que está acontecendo no Rio de Janeiro e o que estamos vendo é que até as Olimpíadas muita coisa vai acontecer e muita gente vai morrer. Tem que mostrar o lado bom do Rio de Janeiro, não pode mostrar favela não pode mostrar várias coisas. Só vão mostrar Copacabana e as outras coisas eles não mostram.



Causa Operária – A polícia no Rio age como se existisse a pena de morte no Brasil. Mesmo que fosse alguém ligado ao tráfico a pessoa teria o direito a defesa. Mas a maioria é inocente que morre.

Patrícia – Não existe pena de morte no Brasil, mas as autoridades permitem à polícia matar. Porque este Luiz Melo matou um rapaz que se chama Wallace de Almeida em 1997 se não me engano, ali no Morro do Chapéu Bandeira. E tem dois meses, o governado Sérgio Cabral foi obrigado, porque tem uma denúncia na OEA [Organização dos Estados Americanos], a indenizar a família de Wallace e pedir perdão publicamente. E agora o Luiz Melo é um herói. Quer dizer um cara que matou uma pessoa que foi indiciado e foi acusado e alegou que era um PM que tinha agido em legítima defesa e o governador recebe uma determinação da OEA de que tem que indenizar e pedir desculpas publicamente e dois, três meses depois ele vai e vira herói e as pessoas não sabem nada disso. Agora ele já recebeu a placa de herói da Tijuca, pela Associação Comercial. Ele tinha mais é que matar o garoto, morreu nas mãos da polícia é porque tinha mais é que morrer mesmo.



Causa Operária – Um estudante que não pode se identificar de 18 anos, denunciou as torturas que sofreu dentro de sua própria casa por policiais do 3º BPM (Méier) na comunidade Cachoeirinha, no Lins de Vasconcelos, zona Norte. Isso aparece na imprensa como uma excepcionalidade. Você sabe de outros casos?

Patrícia – Eu conheço este rapaz. É sobrinho de uma amiga minha. Ele está com muito medo, porque tem vários casos de tortura. A gente acompanha muitos casos. E eles ameaçam para que nada seja falado. Na realidade eles acham que porque tem uma carteira de polícia, com eles não vai acontecer nada. No Morro da Coroa teve gente empalada. Os policiais foram denunciados por tortura. Vários lugares as torturas são registradas. Teve o caso do Leandro, da Parada de Lucas. Em que várias pessoas foram torturadas em um galpão, e o Leandro que tinha sido torturado também. Ele denunciou, foi na Corregedoria Unificada e denunciou, isso era meia noite e meia e acabou vazando a informação de que ele foi denunciar e os policiais chegaram na casa dele às 6 horas da manhã e esperaram ele sair para comprar pão na padaria e ele foi assassinado. O Comandante, na época era o Coronel Pacheco, foi para a mídia defender os policiais.

Esse policial que matou o Leandro, todo mundo sabe que ele e miliciano. Há muito tempo. Ele era cabo, hoje é sargento. Ele matou o rapaz, foi absolvido, porque morador de favela tem mais é que morrer na mão da polícia, todo mundo acha isso, até o conselho especial. Agora ele está aí, está trabalhando, recebendo normalmente, sabe-se lá se ele matou mais alguém. Assim, quem vai denunciar? Eles se acham acima da lei. Porque isso acontece. Eles conhecem muito bem a corporação. Este cabo que participou do roubo da roupa do Evandro do afroreagge ele já tinha respondido um IPM [Inquérito Policial Militar] por isso. Eles conhecem muito bem. Mas normalmente esses IPMs são feitos por outros militares e acabam absolvendo. Como que um policial vai numa comunidade, numa ação em que eles queriam encontrar o que derrubou o helicóptero, foram lá para Cachoeirinha, na comunidade Lins de Vasconcelos, entram na casa do garoto, bateram no garoto, botaram saco plástico na cabeça dele e só não mataram porque a irmã dele chegou. Quer dizer entra na casa da pessoa, e vai batendo, batendo, batendo, fazendo horrores com ela e depois fica com a cara limpa. É essa certeza que ele tem. O coronel, comandante, defendem. Se acabar isso eles vão começar a mudar.



Causa Operária – É interessante saber como é a vida dos jovens que moram na favela e a polícia ameaça constantemente. Você tem alguns relatos?

Patrícia – Eu já acompanhei muitos casos. Você acaba vendo que as autoridades não querem saber. Tem delegado que se prontifica e fica em dúvida, mas têm outros que falam “ah, foi, aconteceu, mas aconteceu por quê?” Quer dizer, a vítima ainda tem que dizer porque isso aconteceu. Eu vi muitos casos, acompanhei pela delegacia, este ano eu já perdi as contas. Mas tem muita gente que não denuncia por medo da represália. Ou acha que a polícia tem o direito de fazer isso, não conhece seus direitos e deveres. Muita gente não denuncia. Mas eu mesma denunciei um coronel, ele falou que ia dar na minha cara e ia me quebrar em uma manifestação. Eu fui à delegacia e fiz uma denuncia contra ele. Ele era comandante de um batalhão da área. Do batalhão da harmonia. E na delegacia me perguntavam: “Você tem certeza?” e eu descrevi como ele era, como estava e confirmaram que era o coronel. Tem muita coisa, por isso as pessoas ficam com medo.



Causa Operária – Você pode comentar a cobertura da imprensa burguesa sobre a violência policial?

Patrícia – A imprensa, às vezes, é muito conivente. Quando a polícia vai fazer operação, eles ligam para os jornalistas e falam “vai ter operação tal, em tal comunidade”. E o jornalista vai lá. E normalmente é a versão da polícia que vai. Falam: “morreram 10 traficantes na comunidade tal”, mas nem sabem se era traficante.

Não procuram saber se é verdade, se é mentira. Por exemplo, nós da Rede temos alguns jornalistas parceiros e mandamos email para eles, ligamos. E eles colocam o que a gente fala. Mas tem jornalista que nós não damos entrevista. A gente sabe que só vão colocar a versão do outro lado, da maneira que ele quer.



Causa Operária - Casos como do coordenador da afroreagge em que a polícia deixou o rapaz agonizando por 50 minutos até a morte ocorrem com freqüência?

Patrícia – Sim, quando tem operação policial na comunidade, e uma pessoa e baleada a versão é que “trocou tiro com a polícia”. Aí a polícia coloca na viatura e leva para o hospital. Mas aí, como leva para o hospital? Às vezes o hospital é ali na esquina, mas o percurso demora uma, duas horas. Tem um caso de um rapaz em São Gonçalo, ele foi numa casa de show e teve uma discussão com um amigo dele e ele saiu da boate e tinha vários adolescentes, jovens. O dono da boate é um tenente da polícia militar, deu um tiro.

No meio da multidão, da confusão, ele deu um tiro no rapaz de 18 anos. Agora fez um ano que ele morreu. O hospital era pertinho da boate, menos de cinco minutos a pé. Ele levou uma hora e meia para chegar para matar ele. Claro que com tudo isso, o menino ficou em coma e em três dias veio a falecer.

Teve um caso em que deram um tiro no rapaz na perna e uma amiga minha que estava lá, morava lá, acompanhou de perto. Assim que botaram na viatura ela foi de taxi acompanhando até o hospital Salgado Filho. Só que demorou mais de meia hora para chegar e além de tudo, ele tinha levado o tiro na perna e quando ele chegou estava com um tiro na cabeça. E ligamos para a corregedoria, porque ela testemunhou, ela viu que o rapaz levou o tiro na perna e chegou com tiro na cabeça. Foi lá no Manguinhos onde morreu o Rafael [Operação policial que vitimou Rafael da Rocha Ribeiro, 15 anos, no último dia 25/10.] ele chegou morto no hospital. Então são vários casos. Em São Gonçalo agora tem uma determinação que a polícia não pode socorrer pessoas baleadas, até porque o alvo de resistência lá está muito grande. Eu acho que tem que ter uma mudança muito séria, o legislativo tem que ver isso, o judiciário. Em muitas coisas a culpa é do judiciário que é muito conivente. Se for pessoa normal é sempre julgada, agora com a polícia.



Causa Operária - Lula prometeu a Sérgio Cabral investir mais 100 milhões supostamente em segurança pública. Equipar melhor os policiais. Qual a avaliação que fazem disso? Não seria apenas o aumento da repressão contra a população?

Patrícia – Com certeza. Lula vai dar mais 100 milhões, o que eu acho que o Sérgio Cabral vai comprar: mais caveirão [Carro blindado da PM. A palavra caveirão refere-se ao emblema do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), que aparece com destaque na lateral do veículo. O emblema do BOPE é uma caveira empalada numa espada sobre duas pistolas douradas. Há alto-falantes montados na parte externa do veículo anunciando repetidamente a chegada do caveirão: “Crianças, saiam da rua, vai haver tiroteio” ou de forma mais ameaçadora: “Se você deve, eu vou pegar a sua alma”. Quando o caveirão se aproxima de alguém na rua, a polícia grita pelo megafone: “Ei, você aí! Você é suspeito. Ande bem devagar, levante a blusa, vire...”.], helicóptero blindado.

O que ele tem que investir é na inteligência e formação. Ele tem que colocar os policiais para fazer curso. Departamento psicológico. Eu fui numa conferência e as mulheres dos policiais relatavam que eles chegam em casa e batiam, batiam, batiam e elas não podiam falar nada, nem na conferência. E a gente denunciou isso. Acho que tem que colocar na formação, mas ele vai investir em caveirão, em armamento. Ao invés de investir em armamento não letal em técnicas de abordagem, vão investir em mais tiros, mais bombas. Fomos fazer uma manifestação na Avenida Brasil e o comandante do Batalhão falou para mim: “eu vou chamar o batalhão de choque para dar porrada em vocês”. Falei para ele, eu não sou obrigada a apanhar da polícia.

Quando fui fazer vistoria em delegacia e um dos policiais foi responder uma das perguntas e ele disse “não, porque na Zona Sul a gente não pode chegar dando porrada, mas na Zona Norte a gente tem que chegar quebrando”. Eu falei: “para o lado de lá do túnel é uma coisa, para o lado de cá é outra”. Se investirem em inteligência e investigação vão acabar prendendo vários policiais corruptos. Mas vão colocar tudo em caveirão, em armas. E é claro que vai aumentar a repressão. Aí não pode fazer manifestação porque é vândalo, associação por tráfico. É isso que o governador quer. Então é o Lula que dá o dinheiro, o Cabral que investe nisso e o Eduardo Paes também. Então até a copa, muita coisa vai acontecer, muita gente vai morrer.



Causa Operária - Lula ofereceu também a ajuda da Força nacional de segurança. Você pode relatar um pouco da ação da Força Nacional no período em que foi colocada no RJ?

Patrícia – Eu acompanhei de perto. Quando começou a conversar que a Força Nacional ia vir, já ficamos muito preocupados. E a gente fez uma reunião de emergência onde conversamos. Logo começou as operações no Complexo do Alemão, onde foram 19 mortes, teve muita denúncia de tortura em outras comunidades. Teve a informação de roubo. Muitas denúncias. Uma das pessoas que morreu no morro do Alemão não morreu de tiro, morreu de facada. No guarda-roupas tem as marcas das facadas. No laudo fala “objeto contundente”. E até hoje o Inquérito referente à atuação da Força Nacional de Segurança no complexo do Alemão não foi denunciado. Tem o laudo da Secretaria dos Direitos Humanos. Eu acho que se colocar a Força Nacional no morro é para fazer operação e matar 30, 40, 50 para ser mais rápido.

Eu nem sei direito para que a força foi criada. Tem que haver uma revisão e uma conscientização. Na época da escravidão matava-se os pobres e hoje isso continua acontecendo. Hoje morre quem mais não tem condições, quem tem condições paga a polícia para matar os pobres. A nossa sociedade aplaude o que aconteceu no Complexo do Alemão. Tem que ter uma campanha muito forte.

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