segunda-feira, 20 de julho de 2009

ARAGUAIA: CURIÓ ADMITE EXECUÇÃO DE 41 GUERRILHEIROS APRISIONADOS COM VIDA

"Canta, canta passarinho,
canta, canta miudinho
na palma da minha mão"
("Canta Coração", de Geraldo
Azevedo e Carlos Fernando)


Não há nada de realmente inédito na entrevista que Sebastião Curió
Rodrigues de Moura, o major Curió, concedeu a O Estado de S. Paulo neste
domingo, 21 (Curió revela que Exército executou 41 no Araguaia) ou nos
arquivos que ele entregou ao jornal.


A contabilidade macabra agora tem cifras exatas, fornecidas pelo próprio
comandante das operações de cerco e extermínio dos guerrilheiros, em
1973/75: de 67 militantes que as Forças Armadas mataram no Araguaia,
foram 41 os aprisionados com vida e eliminados a sangue frio ("amarrados e
executados, quando não ofereciam risco às tropas", explicita a
reportagem). Acreditava-se que fossem "só" 25.


O jornal constata que a verdade admitida por Curió "contraria a versão
militar de que os mortos estavam de armas na mão na hora em que
tombaram". E acrescenta: "Muitos se entregaram nas casas de moradores da
região ou foram rendidos em situações em que não ocorreram disparos".


A extrema-direita passa a vida derramando lágrimas de crocodilo sobre o
túmulo do tenente Alberto Mendes Júnior, morto para não fornecer
informações que dificultassem ainda mais a fuga de Lamarca e seu punhado
de guerrilheiros, cercados por milhares de militares em Registro, SP.


Embora condenável, inaceitável e injustificável, foi uma decisão
tomada em circunstâncias extremas. Bem diferente de, ao arrepio das
Convenções de Genebra e da honra militar, abaterem-se, de caso pensado e
como cães, 41 seres humanos indefesos -- afora tantos outros exterminados
da mesma forma nas cidades, como as vítimas da Casa da Morte de
Petrópolis (RJ).


Virou-me o estômago ficar sabendo do destino dado aos restos mortais de
Antonio Ribas, que conheci em 1968 como presidente da União Paulista de
Estudantes Secundários. Um rapaz grandalhão, simpático e bonachão, que
conseguia manter a ordem nas assembléias estudantis com sua voz forte —
mesmo tendo a desvantagem de ser o único militante do PCdoB entre dezenas
de adversários. Ninguém o imaginaria no papel de guerrilheiro.


“Morto em 12/1973. Sua cabeça foi levada para Xambioá” - esta curta
citação do arquivo de Curió esclarece o que foi feito de um um homem
idealista a ponto de engajar-se, no pior momento, numa luta desigual e
quase suicida. Nem seu cadáver respeitaram, profanando-o como os
jagunços faziam com os cangaceiros.


Exatidão dos detalhes à parte, já se sabia de tudo isso. E também que
as ordens para que fossem perpetradas as atrocidades provinham dos altos
escalões, como sempre ressaltei ao refutar a lorota de que os subalternos
agiam por conta própria. Eis o que o Estadão informa:


"O arquivo dá indicações sobre a política de extermínio comandada
durante os governos de Emílio Garrastazu Medici e Ernesto Geisel por um
triunvirato de peso. Na ponta das ordens estiveram os generais Orlando
Geisel (ministro do Exército de Medici), Milton Tavares (chefe do Centro
de Inteligência do Exército) e Antonio Bandeira (chefe das operações
no Araguaia). Curió lembra que a ordem dos escalões superiores era tirar
de combate todos os guerrilheiros. “A ordem de cima era que só
sairíamos quando pegássemos o último.”
Fica, mais uma vez, comprovado que não se fará verdadeira justiça
punindo-se apenas os executantes dessas ordens hediondas e poupando-se os
mandantes.

Os Curiós e Ustras da vida não passavam de instrumentos de uma política
sanguinária ordenada por Médici e, no mínimo, consentida por Geisel,
com a cumplicidade de toda a cadeia de comando das Forças Armadas e
propiciada pelo prévio estupro à Constituição cometido pelos
signatários do AI-5. Repugna à minha consciência ver só os lambaris na
berlinda, enquanto os tubarões continuam aclamados a ponto de manterem
colunas na grande imprensa.


É positivo que as revelações e indicações de Curió eventualmente
venham a propiciar a descoberta de mais algumas ossadas e a
identificação de outras.

Mas, tudo isto já poderia ter sido feito no ano passado, se houvesse mais
empenho oficial em dar satisfações às famílias sem mortos para
enterrar e/ou sem informações precisas sobre o destino de seus entes
queridos.


Pois, em sua edição de 27/02/2008, a IstoÉ já alertara o Governo, a
partir do próprio título de sua matéria: Este homem sabe onde estão os
cadáveres do Araguaia.


O homem, claro, era o próprio Curió. Eis o relato da revista:

"...com o cerco dos militares, os guerrilheiros foram empurrados para um
recuo no Castanhal dos Ferreira. De lá, eles se dirigiram para a região
da Palestina. Neste local, no Natal de 1973, iniciou-se a fase final do
combate na qual as forças do governo mataram mais de 20 guerrilheiros
antes do Réveillon. “O pessoal dos direitos humanos fica procurando
corpos em Xambioá (base militar), mas muitos corpos estão enterrados na
Palestina, que na época era uma vila com uma rua de terra”, revela.
Contra essa declaração, existe o fato de que sua comprovação custaria
caro. Daquela vila, a 286 quilômetros de Belém, nasceu uma cidade que
hoje conta com 7.500 habitantes. E para revirar o solo seria preciso
demolir casas e esburacar ruas."
Curió também deu, então, esta declaração sintomática à IstoÉ: "Eu
não tenho o direito de levar para a sepultura os dados que tenho e que eu
sei”.

Ou seja, estava ansioso para contar tudo que sabia. Bastaria que lhe
perguntassem.


Mas, como a repercussão do que sai na IstoÉ não é nem de longe
comparável à do Estadão dominical, as autoridades preferiram fazer
ouvidos de mercador, evitando mexer nesse vespeiro.


Afinal, além das despesas com demolições e escavações, há o fato de
que cada ossada trazida à luz (do dia e dos flashes...) representará uma
acusação gritante à bestialidade da ditadura militar. Muitos ainda
preferem o silêncio.







Jornalista, escritor e ex-preso político,
Celso Lungaretti mantém os blogues
http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/

http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com

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